H.
H. morava sozinha com 17 gatos.
Tinha amor por animais mais que por humanos, portanto não poderia desfazer-se
de cada novo bichano que nascia. Os gatos davam à H. a sensação de
responsabilidade, pois aqueles viam na moça alguém a quem depender – e ela
gostava de ser dependida. Órfã de pai e mãe, teve de amadurecer muito cedo. Sua
mãe, que sofria de depressão, tirou a própria vida com uma tesoura de costura,
quando H. ainda aprendia as primeiras palavras. Uma tia disse que ela lia
coisas depressivas demais. Já a outra dizia que era o pai de H. que lhe fazia
sofrer. H. não achava nem uma coisa, nem
outra. Estava certa de que a culpa era dela.
O pai, Sr. A. Frederico, homem
de influência na cidade por causa de seu ofício no banco, foi assassinado na
porta de casa, mais precisamente aos pés descalços de H. Logo no momento em que
ela já havia se acostumado com ele. Era um bom homem, afinal. Sempre trazia a
H. uma bala de anis ao fim do expediente, mais algumas folhas de rascunho do
escritório. Aos domingos, ia à missa das 7h com a menina. Fumava um charuto
pontualmente às 8h. Mas suas mãos nas delas e suas feições às suas eram tão
frias quanto uma manhã de inverno. O sangue não lhe assustara. Apenas o som
estridente do disparo que lhe zumbe até hoje nos ouvidos.
As tias vieram assim que
souberam da morte do cunhado. Não restando mais nenhuma opção, H. teria de
partir para a capital com elas. Tudo parecia já estar planejado. No singelo
apartamento do subúrbio, havia um quarto só para ela, com lençóis e fronhas
bordados de rosas, terço pendurado na cabeceira da cama, Bíblia aberta no salmo
90 e uma imagem de Santa Clara de Assis no criado mudo.
As tias, carolas e puritanas,
observavam minuciosamente cada passo que H. dava, à espera de um deslize. Seus
deslizes, ainda que insignificantes, eram reparados com os joelhos no milho. H.
não podia ter amigos. Não podia ter animais de estimação. Não podia sair
sozinha. Não podia ver televisão. Não podia sair de casa sem antes rezar o
terço. Não podia... não podia.
No entanto, H. nunca demonstrou
fraqueza ante as agruras que a vida lhe apresentava. Era, porém, calculista.
Como os gatos, agia com cautela, silêncio e estratégica rapidez. Dezoito era o
número que precisava para dar adeus ao uniforme do colégio das irmãs marcelinas,
aos joelhos machucados, aos lábios cerrados, à rotina mecânica. Num golpe de
mestre, assumiu a pensão que recebia do pai, antes controlada pelas tias e, sem
dizer adeus, foi à procura de um lugar para tocar a própria vida. Sem depender
de ninguém.
Até que viu Frederico na rua. O
próprio indicou-lhe o caminho. Parou no pórtico de um prédio no centro. Tinha
certeza de que não poderia pagar o aluguel de um apartamento naquele local. Mas
o gato convidou H. a entrar. Apenas um apartamento estava disponível – no
sétimo andar. A senhora de 82 anos ficara viúva e os filhos decidiram mandá-la
a um asilo. Foi a primeira vez que H. demonstrou genuína simpatia a outro ser
humano. Ela prometeu fazer-lhe um preço melhor caso ficasse com sua gata,
Georgeana. Fecharam o aluguel pelo preço de uma quitinete na zona sul. H. não
poderia estar mais satisfeita. Mas não poderia dar-se ao luxo de arcar com
todas as despesas apenas com o que seu pai lhe deixara. Vestiu o seu único
vestido de seda e partiu em busca de um emprego.
Em seu caminho para a estação
central, ouve a conversa de um casal de senhores, reclamando por não poderem
conciliar os compromissos com os afazeres de sua loja. Ele dizia que tinha de
resolver vários assuntos burocráticos referentes à loja. Ela dizia ser desculpa
dele para que só ela trabalhasse. O decidido foi que contratariam um auxiliar.
“Mas quem iria demonstrar interesse em trabalhar num cemitério”? indagou a
senhora. E numa voz rouca e quase inaudível, H. solta um simples e direto:
“Eu”. Seguiram, pois, os três, para a mesma direção. Pegaram o transporte que
conduziria ao local e no trajeto conversavam sobre as condições de trabalho. H.
logo se familiarizou com o cheiro das flores. Aquele foi seu primeiro dia de
trabalho. De 10h às 17h30, limpar a loja e recepcionar os clientes.
E é assim sua rotina de segunda
a sábado, além do Dia de Finados, que por sinal, é seu aniversário.
Ela não sabia se era feliz. Apenas vivia um dia após o
outro. Mas ainda lhe restava um desejo para aquela vida despreocupada com o
amanhã. H. gostaria de poder escrever
– não romances, ou crônicas, ou talvez poesia –, ela gostaria de poder escrever
um novo roteiro para a própria história. Mas toda noite, quando iniciava mais
um “era uma vez...” os olhos cansados já pesavam as pálpebras... e H.
adormecia.