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Contos de H. - 5ª versão


Às 17h35 ela vê boiando em uma poça no canto da calçada um caderninho de couro marrom. H. hesita em pegá-lo, mas sua curiosidade, talvez mais aguçada pela convivência com os gatos, a faz voltar atrás. Ela sacode o caderninho e as gotas que respingam mancham sua saia de linho branca. H. examina as folhas e percebe que a tinta está se desfazendo, quase perdendo as palavras. Então H. apressa o passo para chegar em seu apartamento. No processo entre destrancar a porta e desviar-se dos gatos estirados pelo caminho até chegar ao secador, H. imagina o que de tão precioso pode conter naquelas páginas, para deixa-la tão ansiosa para lê-las. Ela apoia o caderno na pia e vai secando folha por folha. E percebe que se trata de um diário. Estando o caderninho com as folhas já secas e duras, senta-se no sofá e inicia sua leitura:
Rio de Janeiro, 27 de outubro de 1972.
Havia 17 gatos vivendo no apartamento de H. 17, já que o gato mais velho que completava os 18 acabara de morrer. E H. está enlutada desde então. Todo dia às 9h acende uma vela a São Francisco. Diz que os 17 não suprem a falta que Frederico lhe faz. Mas ainda acho que isso ela diria de cada um deles. Ainda mais se fosse de Georgeana, a gata que junto com Frederico dera à luz a todo o restante da bichanada. No entanto, mesmo com Georgeana e os outros 16, H. ainda se sentia só.

Ficou órfã muito cedo. Morou com duas tias solteironas até atingir a maioridade. Aos 18 mudou-se para o centro e já podia se sustentar com o que ganhava como auxiliar em uma floricultura do cemitério local. Bem, ela podia ser jovem, mas não era tola. Apesar de ter seus lutos e traumas, escolhera conviver com quem partilhasse da sina de ter de sofrer a dor da perda. Sua vida cheira a crisântemo e vela de sétimo dia.

Aos clientes que entravam na loja, viúvas, pais e mães inconsolados e órfãos, como ela, H. servia uma xícara de chá de camomila com uma colherinha de açúcar refinado, para tentar adoçar-lhes a amargura das lágrimas. Quando entrava uma moça que também perdera os pais, H. oferecia um botão de rosa branca, por sua conta. Queria ter tido a chance de enterrar a mãe. Era muito pequena na ocasião de sua morte. Mas o antigo perfume que sentia em seu abraço ainda permanecia preso no olfato da memória.
Frederico era o nome do meio de seu pai. Por isso, no enterro do gato, sentiu cumprido o seu dever.

No fim do dia, H. volta ao seu refúgio. Dá de comer aos gatos, lava as louças, põe-se à mesa para jantar. Às 19h, senta-se à janela e, observando o mundo lá fora, imagina novas possibilidades para sua própria história. Até que o último "e se..." a faça adormecer.”

H. fecha o caderno, atônita. Vai tomar um banho, faz um chá de capim-cidreira, dá de comer aos gatos. E às 19h senta-se à janela, tentando descobrir quem poderia querer escrever sua própria história.

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