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H. (4ª versão)

Havia dezessete gatos vivendo no apartamento de H. Oito deles dormiam na sacada, junto aos vasos de violetas mofadas e à rede de malha branca. Eles brincavam com as gotas que caíam do toldo azul que protegia a sacada e, por vezes, seus arranhões na lona davam vasão a novas goteiras. H. não se zangava. Em noites de chuva, aproveitava a artimanha dos gatos e punha as violetas para molhar. Mas não chove tem 52 dias. Quando as gotas aparecem, são da vizinha de cima que lava sua sacada religiosamente às sextas-feiras.
Cinco gatos dormem na sala de estar. O sofá amarelo já sujo e rasgado, vítima das unhas afiadas dos bichanos inquietos, confere à sala um ar melancólico – lembra-lhe sua mãe. Escolhera a cor amarela para o sofá porque dizem que amarelo alegra o ambiente. Para H., no entanto, essa teoria não funcionou. No raque mogno, uma velha TV quebrada. Um vaso solitário comporta uma rosa de plástico. O tapete de H., já com falhas e rasgões, foi encontrado no quarto dos fundos da floricultura onde trabalha. Infelizmente, não combina muito com o sofá, mas dá para o gasto. Agora, os buracos no tapete são bem preenchidos com pelo de gato. H. não se importa em limpar, uma vez que não é alérgica.
Dois gatos de H. gostam do banheiro. É lá também que H. coloca a caixa de areia deles. Parece ser um tanto inconveniente, mas H. não se importa em dividir o espaço de sua higiene com seus bichanos. Os azulejos são originais, lembram um pouco a arte portuguesa, reunindo pinceladas de azul royal com o amarelo ocre. Enquanto escova os dentes de fronte ao espelho enferrujado, H. gosta de imaginar rostos nas manchas dos azulejos. Até agora, cinquenta e sete rostos estão presos nas paredes. E os gatos ronronam na banheira. Banheira que, a propósito, H. nunca usou – e nem tem interesse. Teme que algum dia possa ali ser encontrada já sem vida, como sua tia Margot. É por isso que a cortina da banheira é listrada de verde.
Por fim, os outros dois gatos que restaram, como já se pode imaginar, dividem a cama de casal de H. Feita com madeira-de-lei, a cama foi um achado da loja de móveis usados perto do cemitério. Dizia o vendedor que pertencia a um rico barão de São Bartolomeu, por isso as iniciais cunhadas na cabeceira. H. não se importava com a origem da cama, apenas com a serventia. Trocava os lençóis de cetim todas as quintas-feiras, lençóis que também eram marcados pelas unhas dos gatos. Mas H. só gostava de cetim. O armário de H. mais parecia uma cristaleira, deixando os velhos vestidos, que também pertenceram à sua mãe, à mostra pelos vidros. As cortinas eram de gaze de linho e, por vezes cediam aos raios de luz. No criado mudo, o velho retrato de sua feliz família. Sua mãe, fingindo um sorriso; seu pai, com um ar áspero e bem alinhado; e o bebê H., no colo da mãe, que não tecia expressão alguma. Era ali, no quarto obscuro, que H., vez ou outra, molhava com suas lágrimas o travesseiro – e jurava ser feliz.
O apartamento de H. cheirava a ácaro, caixa de areia e solidão. O sol batia apenas duas horas por dia. As portas rangiam de velhas, a torneira da cozinha pingava impacientemente, a velha geladeira ecoava seu som pelos cômodos. Poderia ser cenário de uma tragédia. Mas H. não nega que sua vida seja uma.

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