Havia
dezessete gatos vivendo no apartamento de H. Oito deles dormiam na sacada,
junto aos vasos de violetas mofadas e à rede de malha branca. Eles brincavam
com as gotas que caíam do toldo azul que protegia a sacada e, por vezes, seus
arranhões na lona davam vasão a novas goteiras. H. não se zangava. Em noites de
chuva, aproveitava a artimanha dos gatos e punha as violetas para molhar. Mas
não chove tem 52 dias. Quando as gotas aparecem, são da vizinha de cima que
lava sua sacada religiosamente às sextas-feiras.
Cinco gatos dormem na sala de estar. O sofá
amarelo já sujo e rasgado, vítima das unhas afiadas dos bichanos inquietos,
confere à sala um ar melancólico – lembra-lhe sua mãe. Escolhera a cor amarela
para o sofá porque dizem que amarelo alegra o ambiente. Para H., no entanto,
essa teoria não funcionou. No raque mogno, uma velha TV quebrada. Um vaso
solitário comporta uma rosa de plástico. O tapete de H., já com falhas e
rasgões, foi encontrado no quarto dos fundos da floricultura onde trabalha.
Infelizmente, não combina muito com o sofá, mas dá para o gasto. Agora, os buracos
no tapete são bem preenchidos com pelo de gato. H. não se importa em limpar,
uma vez que não é alérgica.
Dois gatos de H. gostam do banheiro. É lá também
que H. coloca a caixa de areia deles. Parece ser um tanto inconveniente, mas H.
não se importa em dividir o espaço de sua higiene com seus bichanos. Os
azulejos são originais, lembram um pouco a arte portuguesa, reunindo pinceladas
de azul royal com o amarelo ocre. Enquanto escova os dentes de fronte ao
espelho enferrujado, H. gosta de imaginar rostos nas manchas dos azulejos. Até
agora, cinquenta e sete rostos estão presos nas paredes. E os gatos ronronam na
banheira. Banheira que, a propósito, H. nunca usou – e nem tem interesse. Teme
que algum dia possa ali ser encontrada já sem vida, como sua tia Margot. É por
isso que a cortina da banheira é listrada de verde.
Por fim, os outros dois gatos que restaram, como
já se pode imaginar, dividem a cama de casal de H. Feita com madeira-de-lei, a
cama foi um achado da loja de móveis usados perto do cemitério. Dizia o
vendedor que pertencia a um rico barão de São Bartolomeu, por isso as iniciais
cunhadas na cabeceira. H. não se importava com a origem da cama, apenas com a
serventia. Trocava os lençóis de cetim todas as quintas-feiras, lençóis que
também eram marcados pelas unhas dos gatos. Mas H. só gostava de cetim. O
armário de H. mais parecia uma cristaleira, deixando os velhos vestidos, que
também pertenceram à sua mãe, à mostra pelos vidros. As cortinas eram de gaze
de linho e, por vezes cediam aos raios de luz. No criado mudo, o velho retrato
de sua feliz família. Sua mãe, fingindo um sorriso; seu pai, com um ar áspero e
bem alinhado; e o bebê H., no colo da mãe, que não tecia expressão alguma. Era
ali, no quarto obscuro, que H., vez ou outra, molhava com suas lágrimas o
travesseiro – e jurava ser feliz.
O apartamento de H. cheirava a ácaro, caixa de
areia e solidão. O sol batia apenas duas horas por dia. As portas rangiam de
velhas, a torneira da cozinha pingava impacientemente, a velha geladeira ecoava
seu som pelos cômodos. Poderia ser cenário de uma tragédia. Mas H. não nega que
sua vida seja uma.
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